Um dia eu dormi
pra acordar 40 anos depois
e no futuro, tudo ia bem
o dinheiro, os lugares e as pessoas
não eram mais um problema
No futuro eu continuava sendo quem eu sempre fui
preocupada de que no futuro
eu continuasse sendo a mesma pessoa
sempre com medo de não sustentar
a tragédia de uma vida boa
As ruas e os dias andavam rápido
me afastando pra cada vez mais longe
das minhas memórias e da minha sanidade
e eu começava a me perguntar quando seria o fim
entendendo depois que o melhor jeito de viver
é sabendo que vamos morrer
antes da hora de nos despedir
No futuro tudo passou
e ainda passava
nós estávamos cada vez mais parecidos
nada tinha seus detalhes originais
tudo era profissional e esterilizado
nós também: cortados, moldados e digeríveis
e nesse mundo uniforme
eu reconheci as mãos de um homem
que 40 anos antes
me dizia sobre os semelhantes
um homem fantasma criado pelos meus sonhos
que eu projetei por tanto tempo em tanta gente
E então me despertou a ideia
de que essas coisas já não tinham valor
porque tudo se perde
tudo, tudo, absolutamente tudo
tudo e todo mundo
o amor não suporta o seu próprio peso
não se suporta por si mesmo, assim como somos nós
e eu aceitei o que era certo mas vazio
pelo medo da eterna solidão
o grande amor de outros, mas nunca o meu
E no futuro a minha garganta se torceu
ao perceber que talvez eu nunca tenha tentado
pela covardia ou o medo da falha
Como quando finalmente entendemos a graça de uma piada contada
e então ela já não faz sentido
porque passou como tudo que passa e se perde
tudo, tudo e absolutamente tudo
No futuro estávamos mais próximos de deus
onipresentes, oniscientes e onipotentes
nós e todos os nossos aplicativos, invencíveis
próximos de deus e longe dos nossos
separados por distâncias enormes e horas no trânsito
O futuro tinha as mesmas raízes do presente
e tudo o que é importante hoje, sempre será
a dor e o amor são os únicos temas, como ensina Vinícius
e não existem os grandes artistas, só os pequenos
porque o que é que nos tira a fome ou não nos deixa dormir?
são sempre as mesmas coisas
Não são as guerras dos outros
Não são as roupas novas
Não é a louça suja e nem os móveis empoeirados
Não é a política e nem o futebol
Não são os objetos roubados e nem o carro amassado
O que nos tira a fome ou não nos deixa dormir
são sempre as mesmas coisas
a dor e o amor não tem tempo nem lugar
no futuro e no passado
foi tudo que algum dia me fez mudar
porque tudo passa e se tudo perde
tudo, tudo, absolutamente tudo
tudo, tudo...
Não, não, nem tudo