Vitor Brauer
M
Hoje eu deixei a minha guitarra de lado, junto com a minha insegurança sobre tudo que sou eu. Nascido no dia 29 de dezembro de 1988, já vim ao mundo na hora errada. Mas desde então eu tive orgulho da minha data. Por muitos anos ela foi só minha. E eu até hoje divido ela com poucos que conheço. Todos da minha família esperavam uma mulher que chamaria Maria. Eu seria uma linda menina. Me pergunto se quando eu ouvisse Daniela Mercury, sendo Maria, como eu ia me sentir. O meu primeiro contato com a música talvez seria algo ainda mais forte. Algo que eu ia me lembrar por toda a vida. Daniela Mercury chegaria com sua força feminina e me mostraria quem eu queria ser quando crescer. Minha mãe me pôs na escola de piano com 3 anos de idade. Se eu fosse Maria, ela também ia me colocar. E durante toda a minha infância, eu dividiria minha atenção entre minhas amigas, a música e os desenhos que assistiria. Sim, eu seria uma pequena flor desengonçada, magra e frágil. Mas eu seria linda

Aos 6 anos de idade, num ponto em que eu fiquei com pena de uma garotinha feia e a convidei para ser meu par na formatura, porque ninguém se interessava por ela, eu seria aquela garota feia, e talvez não existiria um garotinho bonitinho com pena de mim, e eu acabaria dançando com o brutamontes horrível do 3º período. É estranho como nos lembramos de coisas tão pequenas e no entanto tão definidoras do caráter de cada um. Ao chegar no colégio primário, com todas as meninas odiando os meninos, eu escolheria o meu preferido, que não seria o preferido do resto das meninas, seria um garotinho que parecesse com meu personagem favorito do Carrossel ou Chiquititas, que eu assistiria na época. E carregaria aquele meu pequeno amorzinho durante um bom tempo. Minha infância ainda duraria ainda muito após o meu primeiro beijo, num garoto do bairro, sob pressão das amigas e dos amigos

É triste, mas possivelmente, eu não conheceria tantas pessoas igual eu conhecia quando garoto. Uma menina, filha única, seria colocada sob os olhares de toda a família, diferente de um menino, que como eu, pode crescer na rua e com uma casa cheia de amigos o tempo todo. Eu seria um pouco guardada, como uma flor, ainda a ser desabrochada

Talvez com 12 anos eu largasse as aulas de piano por ter conhecido o rock por bandas de punk do mundo e da minha pequena cidade. E, como eu não seria boa nem em dançar, nem em cantar, talvez eu traçasse o mesmo caminho que tracei nessa idade. Começaria a tocar baixo, nem pensando em entrar para uma banda, mas com a raridade que é uma garotinha tocando baixo, talvez eu entrasse para minha primeira e única banda. Pois eu não teria o incentivo que sempre tive para tocar música. As pessoas me olhariam com desrespeito, como se eu não conseguisse tocar ou como se eu fosse apenas mais uma garota numa banda, e o máximo que eu tocasse bem, não seria o suficiente para me fazer lutar e continuar num ambiente masculino e mais velho quase na sua totalidade. Minha família não deixaria eu sair com esses meninos também e, após 10 anos de piano e música na minha vida, talvez eu começasse a pensar em deixar de lado tudo que eu amei durante tanto tempo. O que foi uma infância repleta de amigos na minha casa, música, videogames e alegria, talvez seria muito mais solitária se eu fosse uma menina. Mas eu não seria triste, igual eu sou, eu acho. A minha natureza derrotista, como homem, não seria diferente como mulher, é claro. Eu desistiria de muitas coisas, por talvez nem saber que elas eram possíveis de serem feitas naquela idade

Tendo meu primeiro namoradinho com 14 anos, possivelmente quebraria com as minhas próprias derrotas e barreiras anteriores e me tornaria uma menina das chamadas revoltadas do colégio. Talvez nesse ponto eu conhecesse algumas das minhas amigas que tenho hoje no mundo real, mulheres inteligentes e fortes, que tiveram uma adolescência conturbada e difícil numa cidade igual Valadares, onde todo mundo tenta mandar na sua vida, e se você beija mais de dois homens você já é conhecida como vagabunda. Eu pintaria meu cabelo e ficaria conhecida como a drogada do colégio, assim como eu fui conhecido mesmo na vida real. Mas, infelizmente, não levaria para frente a minha vida musical, por ter deixado ela pra trás à tanto tempo

Perderia minha virgindade com meu primeiro namorado, talvez por não ligar tanto pra esses tabus de virgindade numa época em que começaria a me tornar uma intelectual. Todas as discussões que tive na adolescência seriam as mesmas como menina, provavelmente. Eu seria feia, magra, desengonçada, mas tão arrogante e com tantos ares de superioridade que acabaria atraindo olhares de homens por aí. Começaria a fumar e a beber, e pegaria vários caras depois do meu primeiro namorado. Ganhando o amor e o ódio das outras meninas. De maneira nenhuma, eu não teria essa parte destrutiva da minha personalidade que precisa de atenção e de amor e de ódio. Até que um dia me apaixonaria por um dos garotos do grupo dos roqueiros da cidade, e sentiria realmente o que era prazer e sexo. Minha primeira verdadeira paixão seria com esse rapaz arrogante, teimoso e esperto que me faria esquecer de quase todos os garotos que tive na cama e na vida. Eu me sentiria preenchida de verdade, de forma completa, no coração e no ventre. Com 17 anos eu finalmente desabrocharia

Chegando a época dos vestibulares eu abriria mão desse namorado, por posições opostas sobre tudo que é a vida. Mas minha paixão pelo mundo, pelo cinema, pela música e pelas artes em geral, me faria seguir em frente de forma tranquila com ares de maturidade. Eu provavelmente tentaria o vestibular de psicologia na UFMG, e passaria, mesmo que demorasse um ano a mais. Pensaria em talvez começar a escrever e quem sabe um dia, virar uma escritora. Conhecendo o novo mundo e a linda Belo Horizonte, teria minha primeira experiência homossexual com uma das garotas do curso, como é natural. Agora, mais bonita e dona de mim mesma, atrairia atenções por minha personalidade forte e minha misteriosa e atraente transparência. Minha vida não seria mais tão solitária. A imagem que eu, Vitor, criei durante tanto tempo, talvez seria a mesma como Maria. Aqui em Belo Horizonte, depois de namorar com uma menina, eu encontraria uma estranha versão de mim mesmo, chamada Vitor. Hahaha! Eu teria nascido aqui mesmo, e seria de uma família rica, mas honesta e seria um dos seres humanos mais inteligentes que já conheci em vida. Vitor seria o homem mais parecido comigo e talvez por isso mesmo não daria certo. Eu veria as minhas qualidades e defeitos nele, como num espelho, e tudo que no início me trazia amor e carinho, no fim das contas me traria frio e tristeza. E eu acabaria aqui, no mesmo lugar que estou, escrevendo esse texto, sobre como eu seria diferente se tivesse nascido um homem. Talvez eu lançaria esse texto como o meu primeiro texto como escritora. Apesar de tudo, meu destino não seria diferente, aqui em Belo Horizonte eu finalmente conheceria todos os amigos que hoje carrego comigo. E eu os uniria, como hoje em dia eu os uno. Minha missão nessa terra tem sido unir as pessoas, isso pode parecer bobagem, mas hoje em dia eu sinto que é verdade. Tanto com minha música, quanto com minhas amizades, quanto com meus amores. Na minha adolescência eu me transformei numa espécie de líder, sem querer ser um líder, e até hoje carrego essa cruz que é a minha maior vitória. Uma menina criada por mulheres num mundo de homens seria muito diferente do que eu sou, um menino criado por mulheres num mundo de homens. O mundo me faria demorar mais pra ver o líder que existe em mim mesmo. Mas eu venceria. Como eu venci aqui. De alguma forma, no final das contas, eu consegui me livrar de todas as pernas que me ajudaram a me erguer, mas que me seguravam no chão até agora. Minha mãe, minha Minas Gerais e minhas mulheres. Chegou a hora de me livrar do M maíusculo que me guiou até aqui, para me reerguer com minhas próprias pernas, voar e viver