Enigmacru
Poço
[Verso 1]
Eu até vos dei vozes
Criei-vos a todos
Uns em cima dos outros
De cabelo ao pescoço, até vos dei nomes
Na altura eu não soube
O quanto é perigoso
Arrepios no corpo ao menos 'tou preso no poço com eles
São tudo o que eu ouço há meses
Sem contar com as vezes
Em que eu peço silêncio ou socorro
'Tou de mãos a abanar ao tempo
A impedir o meu afogamento
Que se fodam os dramas e os salvamentos
Das vozes, fantasmas e os julgamentos
Só há água no corpo na minha mente
Espero que isso me ajude minimamente
Eu já tentei quase tudo
É a milésima vez que eu flutuo
Entalo-me e a água que engulo mantém-me vivo
Para eu repetir tudo
Nem sei se imagino as pessoas
Ou se já tenho os olhos habituados ao escuro
Deixei que a água me cobrisse o rosto
Fechei os olhos e insisti de novo
Nadei o mais que consegui p'ra baixo
Acho que nunca tinha ido assim tão longe
Foi o mais que pude, o meu maior esforço
Eu movia o mesmo
Já mexendo o dobro quase sem ar ou restava pouco
Todos calados à espera que eu o poupe
Apesar de eu jurar que não volto
Prefiro 'tar morto a fingir que não sofro
Quando eu puxar ar acabou-se
Eu vi o teu corpo entrar pouco a pouco
Num negro quase amargoroso
Contigo naquela água doce tão frio como aquele foço
Inspiro o ar dobro o pescoço, abri os olhos no escuro e vi-te Distingui-te cada vez mais turvo e nisto hesito
E tu nadas mais fundo segui-te e perdi-te no meio dos vulltos
Eu juro nunca te menti
Encontro por fim o teu contorno
Aos poucos entendi o teu sufoco
Há muito que eu tinha perdido o fôlego
Até sentir agua cobrir me o estômago
Abrir os canais com caminho aos brônquios
Eu vou cuspir bolhas e abrir os olhos
Distinguir em todos os meus contornos
Definem as coisas como eu não posso
Refletem-me em queda mas soem enquanto eu desço
Há correntes em torno dos membros não sou eu que os mexo
Há vozes que eu ouço a sair do pescoço
Que não vieram de dentro, se não como é que eu as entendo?
Há uma maior do que o resto em redor
Que ainda é mais convincente, não sou eu que invento
Talvez tenha sido mais do que eu consigo
Parei um momento procurei um consenso
Já começo a pensar em voltar o oxigénio não dura p'ra sempre 'Tou a ficar sem tempo
Nadava até onde me pudesses ver
E a água levou me sem o saber e mostrou-me o caminho
Que tinhas percorrido
Vi bolhas subirem com o teu reflexo
E outras surgirem do lado inverso
Já nem sabia onde é que estava ao certo
Sentia somente que estavas perto
Só queria que visses que eu existia
Nem sei se me viste com a euforia
Abanavas os braços e insistias
Inspiravas os tragos e expelias
Agitavas a água e eu não te via
Momentos depois já não reagias
Eu tenho de voltar p'ra cima
Os teus olhos d'um vermelho vivo num rosto sem vida
Agarrei-me nas pedras, puxei-me
Mas elas não queriam diziam-me "fica"
Eu ouvi-as a todas e vias mexer as partículas
Eu olhei as fissuras toquei nas roturas
Pareciam sentir-me foi tudo tal como dizias
Haviam algumas partidas vertiam gotículas
As pingas criavam películas seguiam por fendas e formavam siglas E separavam nomes com vírgulas
Eram camadas de gostas contínuas meras palavras
Eu ouço-as, sigo-as
Eu vi o teu nome a ser preenchido e fugi daquele sítio
Movi-me num movimento impulsivo convertido num ciclo
Subi um pouco mais
Eram tantos canais, eu não consigo
Só havia eu e o meu caminho
O líquido em volta e o ar que expiro
Ele foi lentamente mas é finito
Senti-me quase a perder os sentidos
Lutei contra a força do meu instinto
Inspiro e....