Xará
Dia de Chuva
[Verso 1]
Acende a luz que é pra iluminar o quarto
Eu li teus textos um por um, cada vez mais abstratos
Mar não tá pra peixe, o louco se jogou no couro
Tatuou no corpo a filha, em cima escreveu "socorro"
O tempo aproximou um mundo de questionamento
Na cabeça martelou, martelou sofrimento
Desligou a webcam, andou quase a noite inteira
Foi: geladeira - quarto, quarto - geladeira
É só poeira, deixa como tá pra acumular lembrança
Na prateleira ainda tá lá um prato pra ganância
Um bilhete premiado, e se eu morri, dá meu carro
O resto é pra minha filha, vai junto com o recado
Eu tô sufocado, mãe, filha, teu pai te ama
Só acredita em você porque até quem ama engana
Não deixa nada te amargar demais o coração
Lembra a busca é pela afirmação, legitimação
E que o resto é consequência mesmo que eles digam não
Nunca esquece que tu tem escolha, nega a servidão
Se mantém intacta, vão tentar te envenenar
Cuidado até com o espelho, o mal é subliminar
Buscou um ponto de equilíbrio, olhou pela janela
Admirou tudo em volta, a incerteza nunca espera
Fez as pazes com a religião, família e ex-mulher
Leu de vida após a morte, vai que vira, cai em pé
[Interlúdio 1]

[Verso 2]
Garfo com colher e faca, copo com garrafa
Eu tô catalogando a casa pra ver se essa merda passa
Prato e taça, até carteira, quadro, armário
Aquele som lá de fora vem com gosto de trabalho
Votos de vencer sem plano pra vitória
Foto e calendário, em cada caixa uma história
Eu guardo bem minhas palavras, são poucas mas eu guardo
Uma letra, uma anotação e um porta retrato
Toca disco e televisão, resignação
Pensei no Marvin Gaye, tipo premeditação
"Nevermind", Kurt, eu fui falar, veio tudo
Eu tenho um filme pra entregar, eu sei, abandonei os estudos
Eu vou fazer o que da vida? Pensa e analisa a cena
Não basta minha família e dinheiro, eu sou o problema
Já percorri a sala, chorei fui na sacada
Olhei, desci de elevador, depois subi pela escada
Com vizinho tramador a cada porta e corredor
Cumprimentei cada um, como.. vibe de amador
Com um futuro escrito a mão por mim, e o quê que me faltou?
Tive com a felicidade bem aqui, me escapou

[Interlúdio 2]
[Verso 3]
Terceiro ato: quem te viu, viu a imagem da esperança
Puro na ilusão, ansioso igual criança
Exitante, obscuro, o medo te fez refém
Sem obstinação, meio mal, meio bem
Numa corda bamba, tendencioso pro pior
Parou com Jorge Ben enquanto conferiu no nó
Largar mão de tudo é foda, e ao mesmo tempo é covardia
Orou foi pra São Jorge nessa hora, quem diria...
Tomou um gole d'água pra perpetuar rotina
Num estado de elevação que te contamina
"Será que vale a pena?" A dúvida sacode a mente
Verdade pra valer tem que ser contundente
Se não for, vira greve de fome do garotinho
Tentação vai embora, anda, sai do meu caminho
Eu não posso fraquejar, agora tenho que ser sujeito
A culpa invade porta a dentro, e crava no meu peito
Um passo a frente, pra descer tem que cair
Um passo atrás e os inimigos vão me perseguir
O sol bateu no rosto, eu dosei na tristeza
O mundo não ficou cruel, sempre foi por natureza
Travo o pé, sua a mão, embriagado de incerteza
Um passo pra libertação, momento de clareza
Eles querem me persuadir sem deixar sequela
Eles querem integração assim, murando a favela
Aqui não, se eu voltar vai ser eu com meus motivos
Como eu vou olhar meu pai assim? Eu nunca mais consigo
Parece simples, mas é meu nome que tá aqui
Tenho mais a perder se eu voltar do que se eu seguir
[Outro]
Eu li demais só, eu vi demais só, vivi demais só
Sofri demais só, sonhei demais só, planejei demais só
Bebi demais só, só num gole fiquei só...