[Letra de "175 Nada Especial" com Gabriel, o Pensador]
[Intro]
—E aí, Pensador?
—Fala
—Tá esperando que ônibus aí?
—157
—Ih, corre que tá saindo um ali agora
—Falou, então
—Valeu
[Verso 1]
Mais um dia, mais um ônibus que eu peguei no Rio
Um ônibus tranquilo: estava vazio!
E a cidade engarrafada, como não podia deixar de ser
Viagem demorada, o que fazer?
Sem nenhuma mulher por perto pra bater um papo esperto
Resolvi escrever um rap a mais, mas não estou bem certo
Sobre o que eu vou rimar
—Diz aí, trocador
—Ah, sei lá
Então eu vou no instinto
Pego um papel e vamos vê o quê que dá
Foi nesse instante em que eu olhei pela janela
E que susto eu levei
Era ela: a inflação estampada na vitrine
Atingiu meu coração e deu vontade de partir pro crime
Porque o que eu quero comprar já não dá mais
A não ser que eu faça como fez o Ferrabrás (Quem?)
Então eu tento esquecer, continuar a rimar
Mas o que eu vejo do outro lado é duro de acreditar
Mas é real e a realidade dói demais
São dois mendigos se matando pelos restos mortais
De um cachorro qualquer que foi atropelado
E vai virar rango e se der talvez seja assado
—Hmm, esses nojentos gostam disso?
Não, arrombado
Aquilo é um ser humano que chamaram de descamisado
Um desesperado, um brasileiro como eu
Que deve sempre perguntar: "Será que existe mesmo Deus?"
Não é o Pensador que vai tentar responder
Eu continuo rimando, tentando esquecer
[Refrão]
Porque esse rap não é sobre nada especial
É o rap do 175 que eu peguei na central
[Verso 2]
E de repente o ônibus começou a encher
Entrou mais gente, houve um tumulto
Alguém gritou e eu olhei pra ver
—Quê que é isso? Quê que tá pegando? Quê que tá havendo?
—É um assalto, malandro! Será que você ainda não tá percebendo?
O desespero do trabalhador começou
E eu também tentava esconder meu dinheiro
Quando alguém falou:
—Libera esse aí que é o Pensador, mané!
Mas eles eram meus fãs, então levaram meu boné
—Autografado né, Pensador, se liga!
Alguns acharam que eu era cúmplice, quase deu briga
Mas a viagem prosseguiu e os ladrões desceram
E aí a raiva que subiu na cabeça dos passageiros
E o mais injuriado era um bigodudo
Que tinha ganhado o salário ("Eles levaram tudo")
Entraram dois PMs pela porta da frente
Estufando o peito e olhando pra gente impondo respeito
Mas os ladrões já tavam longe, num tinha mais jeito
Pra piorar levaram o bigodudo como suspeito: ele era preto
Coisas desse tipo é difícil esquecer
Mas eu vou continuar porque eu já disse a você que:
[Refrão]
Mas esse rap não é sobre nada especial
É o rap do 175 que eu peguei na central
[Verso 3]
Agora estamos passando pela praia de Copacabana
Travestis e prostitutas se acabando por grana
E os gringos vão achando aquilo tudo bacana
"O Brasil é um paraíso! As mulheres são boas de cama"
Ô, gringo, não força, deixa de ser imbecil
Você que vem lá de fora quer entender do Brasil
Hã, "o Brasil é um paraíso!", é mole? e o inferno é onde?!
(Pera aí, Pensador)
E por falar em paraíso, olha que loucura
Subiu no coletivo uma estranhíssima figura
Com uma Bíblia na mão e uma cara de débil mental
Pregando a enganação da Igreja Universal
Ou será que era alguma outra igreja dessas?
Ah num faz mal, igreja de enganar otário é tudo igual
E o coitado foi soltando aquele papo de crente
Eu rezando: "Deus, me dê paciência!"
Mas o pentelho desceu pra alegria da gente
E na saída do ônibus sofreu um acidente
Se distraiu e foi atropelado pelo caminhão
Morreu esmagado com a Bíblia na mão
É morreu? Melhor do que viver nessa ilusão
Num queria Deus? Foi pro céu então (Num sei, não)
Enquanto todos se benziam com pena do crente
Eu fui rimando, bola pra frente
[Refrão]
Porque esse rap não é sobre nada especial
É o rap do 175 que eu peguei na central
[Verso 3]
E eu percebi que o trocador ficou fazendo careta
Pro coroa que passou por debaixo da roleta
Era um senhor de óculos, barba branca
Ei, pera aí
—Ei, professor, o quê que o senhor tá fazendo aqui? Quê que houve? Foi assaltado? Perdeu o dinheiro?
—Hmm... sabe o quê que é... Eu já gastei o salário inteiro
Hm, hm, mudei de assunto, ele já tava encabulado
No meio do mês, o salário dele já tinha acabado
Era o meu ex-professor da escola (Coitado)
Tá fodido e mal pago, daqui a pouco tá pedindo esmola
Ele é um mestre, um baú de sabedoria
Esse num é o valor que um professor merecia
Profissional de primeira importância pro nosso futuro
Ninguém mais quer ser professor pra num viver duro
E ele desceu em outra escola pra dar mais aula
—É que eu trabalho nos três turnos, chego em casa e ainda corrijo prova
—Tchau, professor
—Tchau, Pensador
Desceu mais um trabalhador que tá numa de horror
[Refrão]
Masa esse rap não é sobre nada especial
É o rap do 175 que eu peguei na central
[Verso 4]
E nós agora estamos passando pelo bairro de São Conrado
E, como o tempo tá fechando, eu tô ficando preocupado
Ih! Choveu! Pronto, tudo alagado
Uns vão nadando outros morrendo afogados
E enquanto na favela tem barraco caindo
Não é que passa o prefeito num iate sorrindo
E se o nosso ex-presidente estivesse aqui
Ele estaria certamente num belíssimo jet-ski
Mas como nós não temos embarcação pra todo mundo
Essa triste situação tá parecendo o fim do mundo
Pra quem tá de carro, pra quem tá de ônibus
Nessa Rio-Babilônia, no Brasil do abandono
E enquanto os governantes vão boiando sorridentes
Vamos remando bola pra frente
[Refrão]
Porque esse rap não é sobre nada especial
É o rap do 175 que eu peguei na central
[Saída]
E o pior de tudo, tudo é que nessa grande viagem
Nada disso do que aconteceu foi novidade
E as autoridades estão defecando
Pro que acontece ao cidadão brasileiro no seu cotidiano
Porque pra eles isso não é nada especial
No dos outros é refresco, num faz mal
E fecham os olhos pro que até cego já viu:
O revoltante retrato da vida urbana no Brasil!
E eu não me refiro ao 175 ou qualquer linha da central
Eu tô falando do dia a dia a qualquer hora em qualquer local
Porque esse rap não é sobre nada especial