Análise de Genius Brasil para o disco Veterano de Carlos Gallo
Segundo trabalho solo de Nego Gallo depois do grupo Costa a Costa, Veterano foi lançado em Janeiro de 2019. Com produção de Coro Mc e co-produção de Leo Grijó, o disco conta ainda com participações de DaGanja, GALF AC, Mc Mah e Don L.Lembro-me de ter visto o Nego Gallo pela primeira vez durante o show de lançamento de Roteiro para Ainouz, vol.3 (Sesc Pompéia, 18/01/2018). Foi chamado ao palco para cantar com Don L o verso de “Aquela fé” e depois apresentou ao público “O Bagui Virou”, single que viria a integrar seu álbum de estreia. Gallo, vestido como um sobrevivente de guerra, ou de guerras, usava um adereço em seu casaco que lembrava um cinto de balas de soldado, preenchido por búzios ao invés de munição. Aquela mesma sinceridade que Gallo despejava ali naqueles versos está presente em seu disco solo de estreia, Veterano (2019).
Falar sobre o Veterano é rasgar-lhe elogios; a começar da capa, que poderia perfeitamente ser cartaz de um filme do Glauber Rocha. O fotógrafo responsável por ela é Antonello Veneri, um desses caras que parecem apaixonados pelo país e por documentar sua gente, enquanto o projeto gráfico ficou por conta de Filipi Filippo, parceiro antigo de Don L. Outro destaque é para a qualidade da produção, um disco enxuto, com faixas necessárias, sem excesso. Perfeccionista até nas transições entre uma faixa e outra, fazendo com que ouvi-lo na íntegra e na ordem seja uma experiência e tanto.
As temáticas variadas abordadas por Gallo passam um recado a toda cena do rap: será mesmo que fazer rap é falar de uma coisa só? O trunfo parece morar na diversidade, no saber transitar. O trunfo é em fazer música com bom humor, sem precisar, por exemplo, rebaixar mulheres ao tratar de desencontros da vida amorosa: “Ela saiu do meu mundo batendo a porta/ Mandando a puta que o pariu eu e minha vida torta”. Músicas mais reflexivas, sobre um cotidiano difícil, mesclam-se àquelas que podemos ouvir relaxando na praia, como “Downtown“. Essa, inclusive, inspirada em sua quebrada, nas festas de reggae, como declarou o próprio. Ninguém é uma coisa só, como o Mano Brown já disse que cada favelado era um universo em crise, mas um universo.
Penso, ao ouvir o disco, naquilo que é o reconhecimento devido e esperado aos artistas brasileiros. Infelizmente, devido a uma estrutura de classe onde existem os dominantes e os dominados, esses segundos nunca recebem o merecido pelo que realizam. A música “Cidadão”, que ficou conhecida na voz do Zé Geraldo, falava sobre um pedreiro que construiu um belo edifício, mas nunca pode entrar nele. Construiu também uma escola na qual sua filha jamais poderia estudar. Um povo que está sempre recebendo menos do que produz, a falta é presença constante em seu cotidiano. Como imaginar um reconhecimento à altura diante dessas circunstâncias tão estáticas? No entanto, prefiro imaginar justiça e igualdade aos espoliados, e aos artistas que às vezes acham que estão falando apenas com as paredes, sem destaque ou condições. É reconhecimento que eu espero para Gallo, autor de um disco memorável.
Imagina um milhão na conta de Nego Gallo?
- martaOs tempos de Costa a Costa ficaram para trás, mas assim como a dupla com Don L conquistou o Brasil, é a vez de Nego Gallo fazer o mesmo de forma independente. Quando eu ouvi Veterano pela primeira vez o sentimento era como se estivesse entendendo o rap pela primeira vez, é como se escutasse algo extremamente novo e único ao mesmo tempo familiar. A imersão desse álbum é a mesma de alguém com muita experiência e vivência te dando conselhos, contando histórias.
Como alguém que domina um ofício ou uma arte marcial, como um verdadeiro mestre, Nego Gallo literalmente passeia em cada uma das produções, faz escolhas que muitos MCs, da nova e da velha escola, não teriam coragem em seguir. Aqui a divisão boombap e trap se perde, muitos ritmos caribenhos tomam conta, tudo soa muito orgânico, principalmente pela naturalidade que as palavras tendem a se encaixar, você sente a serenidade, a fúria, a fome, cada sentimento em cada verso combinado com as produções.
E mesmo soando muito íntimo, as participações se misturam perfeitamente ao que o Gallo tem a oferecer. Não tem como deixar de comentar o fato que Don L, embora tenha ido por outros caminhos, continua, junto ao Carlos, sendo a dupla Costa a Costa, como se tivessem vivido todos esses anos lado a lado sob o mesmo teto, é um equilíbrio de dar inveja a qualquer dupla do rap que você possa imaginar, seja no rap nacional ou internacional. “No Meu Nome” é a confiança de quem fala o título da faixa sem medo de falhar. E mesmo com uma participação do Don que nos deixa sem palavras, Coro MC vai te deixar ainda mais impressionado.
Jonas de Limas, que assina como Coro MC, é responsável pela produção do álbum e talvez um dos versos mais atuais e memoráveis dos últimos anos. Em “Passado Presente”, Carlin’, como diria Don L, começa com um verso curto com uma densidade de informações que vai demorar muito tempo para o público entender cada palavras:Maldade na mente, o Senado mente
A cena choca, o choro e a cena, o show não para
Novo milênio todos são alguém ou conhece alguém na favela
Que morreu sem dever ou cumprindo o dever, ou
Dando a vida por elaSe isso não fosse o suficiente, Coro descreve com uma precisão cirúrgica o que o Brasil vive a cada segundo, palavras que chegam aos nossos ouvidos justamente por alguém que vive à margem da sociedade e enxerga o que é fundamental, a vida:Como alguém que deu ordens
Porque recebeu ordens
E foi contra a vida
Pelo bem de outras vidas
Me explica, gente de bem, me explica:
Como um cristão que lincha
Outro cristão na ira, vai pro sabadão
Depois da ressaca, pede o perdão
Fica tudo bem e muda depois da missa?!
Passaporte pro céu dizimista?!
Sonha que é assim, irmão
Sonha que é assim em vão
Não sonha que é assim, nãoNão seria difícil ficar falando da beleza de cada faixa desse álbum. O refrão do funk “DVD” que faz qualquer um cantar junto, o sentimento de “O Bagui Virou”, um verdadeiro grito proferido quando as coisas voltando a dar certo, ou ainda “Dois Cofres Uma Porta”, que quebra o ritmo social e político do álbum, mas que revela que todos somos humanos, amamos e que tudo vai dar certo.
Enfim, são arrepios em cada vivência passada nas faixas desse álbum e que te atraem já de início pela capa, a balança equilibrada e marcada nas costa do Gallo, a caminhada que não é nem um pouco metafórica, mas real. É o chão seco que remete o sofrimento, mas que dá esperança de dar frutos, assim como o horizonte azul incerto. É o aqui e o agora, é um dos melhores discos que você vai ouvir ou já ouviu, é muito mais que um marco na carreira do Carlos Gallo, é um marco no rap nacional, um verdadeiro veterano dando aulas.
- kray