"A arte é uma terapia, uma forma de alívio, de enxergar tudo como parte de algo maior."Uma das marcas do Don L nestes últimos anos tem sido seus versos livres. Em 2015, "Verso Livre n.01 (Giramundo)" mostra uma transição da mixtape Caro Vapor (2013) para seu primeiro disco Roteiro Pra Aïnouz Vol. 3 (2017). No fim de 2017, Don nos proporcionou um presente de ano novo com "Verso Livre Nº. 2 (018)", faixa que reflete o sucesso do seu disco de estreia. Por fim, "Verso Livre / O Mundo é Nosso Pt. 2" marca a terceira faixa da série. Dessa vez a música foi lançada no canal Rapbox, tendo a participação do Eddu Ferreira e Deryck Cabrera, e contém duas partes, a primeira é uma crítica ao governo e a segunda faz referência a faixa da sua primeira mixtape "O Mundo é Nosso".
Com a sequência de RPA3 sendo desenvolvida a um bom tempo, um novo Verso Livre parece ser uma boa forma de fornecer aos ouvintes uma prévia dos momentos de inspiração do Don. É o que vocês irão ouvir em "kelefeeling (Verso Livre)", com produção de Deryck Cabrêra & NAVE e pós-produção é do Luis Café, que será lançada no dia 08 de Junho acompanhado de um videoclipe no seu canal do Youtube.
A Equipe da Genius Brasil teve acesso a nova música com antecedência e, a partir das nossas primeiras impressões, conversamos com Don sobre a nova faixa e a produção do videoclipe. Confira a entrevista completa:1. Esse novo single parece tratar do seu processo de criatividade na composição das letras como se ela fosse uma mulher, não é a toa que a música soa como lovesong. Existem algumas ocorrências na música onde uma emoção é comparada a uma mulher, como é o caso do Common em “I Used To Love HER” comparando-a com o próprio Hip Hop, JAY-Z em “History” faz essa relação com a vitória ou mesmo Bk’ em “Amores, Vícios e Obsessões” a respeito da sua música. De onde surgiu a inspiração para compor esse verso livre? E por que fazer essa homenagem neste momento antes do disco?
Na verdade, eu não tô falando de uma mulher, eu tô falando de Deus. É uma conversa com Deus, como eu às vezes acho que deve ser uma oração, com a sinceridade e aquela dose de ironia de amigos íntimos. E aí eu faço brincadeiras com essa Deus no feminino, chamando-a de stylist das ilusões, designer da ingenuidade, barista de corações, holding da felicidade.
2. Pela música em si ser “uma oração do artista para a deusa da criatividade”, e pelos termos e pela linguagem mostrarem uma certa aproximação com a literatura grega clássica, ela possui uma relação com a musa Clio? A literatura grega tem tido destaque na sua vida, na sua leitura?
Eu li poucas coisas da literatura grega. A referência ali é uma ironia, Sófocles criou aquelas tragédias sobre a condição humana, mas se a Deusa criou Sófocles a existência dele é uma sátira. É como se eu tivesse falando com Deus tipo, tá bom, cê já se divertiu o bastante comigo, eu já me fodi o suficiente nessa porra mas ao mesmo tempo tem sempre algo de sedutor que te faz seguir sonhando, seguir inspirado pra viver, e é disso que se trata a música. Não deixa de ser uma declaração de amor, mesmo.
Foto por Helder Fruteira3. Nessa nova faixa, os ouvintes vão encontrar referências a Shakespeare e Sófocles, que são dois dramaturgos cujas obras possuem finais trágicos como “Romeu e Julieta” e “Édipo Rei”. Podemos dizer que existe um lado trágico no meio da criação artística? E existe alguma experiência pessoal por trás da inspiração desses versos?
Nessas obras parece que não importa o quanto você tente mudar o destino, você vai se foder sempre, só vai mudar a forma. É louco que as maiores criações artísticas são produzidas a ferro quente lapidando a dor da sua própria carne. A arte é uma terapia, uma forma de alívio, de enxergar tudo como parte de algo maior. Nesse caso a obra é a própria vida. Eu ainda não decidi se a obra é minha ou dela. Mas a carne que queima é minha sem dúvida, então eu tô reivindicando pelo menos parte da autoria e os royalties.
4. Como você conheceu e decidiu trabalhar com essa equipe (Helder Fruteira (@afilmbyme_), Aisha Mbikila (@aishambikila), Yuri Padre (@yuriopadre), Marina Deeh (@marinadeeh) e Suyane Ynaya (@suyane_ynaya)) que produziu o videoclipe?
Eu acompanho os trampos da Aisha e tinha chamado ela pra fazer o casting de um clipe que acabou não rolando, antes de ela começar a dirigir. Um dia ela me chamou pra falar sobre a ideia de dirigir um clipe meu, nessa parceria com o Helder, que ela me apresentou e eu achei foda o trampo deles. São pessoas que tem uma conexão real com a música e ideias originais. E eu gosto de me conectar com artistas que tem uma busca real, de vida, e senti isso neles. Eu mandei pro Maleronka que faz direção artística e A&R do meu trampo e ele achou foda também. A Marina é minha produtora e quando eu vi, ela tava fazendo direção de arte. Zica demais. E a Suyane foi indicação da Aisha, mas eu já sacava o trampo dela, que acho foda.
6. No vídeo há frames que aparentam ser referências ao filme ‘Clube da Luta.’ Há ideia sua por trás disso? Há mais influência da cinematografia como arte, além dessa e do Aïnouz?
A ideia do vídeo foi da Aisha e do Helder mesmo, a partir do que eles sentiram com a música e com nossas conversas. Então fui confirmando o que eu curtia ou não. Fui também propondo junto com o Maleronka e a Marina, aí a gente foi construindo. Eu gostei de como algumas partes me lembram de Strange Days, que é um filme que eu amo. Clube da Luta é um filme que a galera mais cinéfila não gosta, mas eu acho foda. Talvez por motivos muito pessoais. Ali na parte que parece ser uma referência ao Clube da Luta, o que eu pensei quando vi foi que tinham hortas e um novo mundo na vista da janela, em que no filme se vê prédios explodindo. O que seria na real uma forma mais eficiente de implodir esse. É uma música que apesar da ironia, fala de fé, de um novo mundo possível, de um novo dia, da inspiração pro começo de um novo ciclo.
7. Na descrição do videoclipe está escrito a seguinte mensagem “Todos os protocolos de segurança para COVID-19 foram respeitados durante as gravações”. Como se deu esse processo de filmagem neste contexto de pandemia? Como foi traduzir as ideias para uma dinâmica de trabalho que exige o distanciamento social? E de que maneira isso dificultou ou possibilitou a criatividade neste processo de construção do audiovisual para faixa, considerando que ela é uma homenagem “a deusa da inventividade e passeia entre a liberdade e a ambição artística do MC”?
A gente fez praticamente sem equipe, nem a stylist (a das roupas) colou. Foi só o Helder mesmo filmando, a Aisha dirigindo, e a Marina fazendo produção e arte, todo mundo de máscara e mantendo distância. A gente já tinha pensado o clipe pra essas condições e na real a música não foi escrita na pandemia, ou em situação de quarentena, mas é basicamente o mesmo sentimento, porque o mundo não mudou com a pandemia, a pandemia é que talvez nos traga a urgência de mudar o mundo, mas no meu caso isso já é latente a muito tempo.O novo Verso Livre ficará disponível para todos no dia 08/06 junto com o videoclipe, com direção de Helder Fruteira e Aisha Mbikila, no canal do Youtube do Don L.